Você já viu heroínas feministas na animação, garotas que até mesmo se disfarçam como homens para conseguir mostrar seu valor. Basta se lembrar de Mulan, animação da Disney inspirada numa velha lenda chinesa. Mas você nunca viu nada parecido com a nova animação da Pixar/Disney. Para início de conversa, Valente é a primeira animação da parceria coassinada por uma mulher, Brenda Chapman. Numa entrevista por telefone, a produtora Katherine Serfian e o codiretor Mark Andrews falam do filme que estreiou em 20 de julho no Brasil. Katherine diz que gostaria que Brenda tivesse assinado o filme sozinha, Andrews destaca o que há de revolucionário na cabeleira ruiva da obstinada heroína, tão boa de arco que participa da disputa que vai definir quem será seu marido.
Como se isso não bastasse – a heroína que se disfarça, humilha os
pretendentes, todos príncipes, e quase leva o reino à guerra -, a massa
de cabelos ruivos de Merida (é seu nome) já virou um marco na história
da animação, e por dois motivos. Pelo que representa, metaforicamente, e
pelo desafio técnico que foi criar na tela aqueles fios esvoaçantes.
Ruivas fogosas têm cruzado a tela, e a fordiana Maureen O’Hara e Rita
Hayworth foram apenas duas delas. Maureen foi uma inesquecível irlandesa
de maus bofes em Depois do Vendaval - Merida é escocesa, mas,
sim, existem nela ecos da Mary Kate Danaher de John Ford. Quanto à
técnica, os cabelos de Merida consumiram quase dois dos quatro anos que
durou toda a produção e há outra cena com água que também monopolizou os
técnicos e artistas da Pixar/Disney por mais um ano. O resultado
impressiona, com certeza.
O desenvolvimento tecnológico da animação é uma das consequências da
nova era digitalizada do cinema. As animações ficaram tão perfeitas que
está cada vez mais fácil aceitar um rato como herói (Ratatouille).
Praticamente não existe mais diferença da live action. É mesmo?
Katherine faz a ressalva – “A diferença persiste, sim. Tudo o que se
refere à vida vegetal e animal, aos cenários de Valente é de um
realismo extremo e minucioso. Se tivéssemos filmado em live action,
nada daquilo seria mais verdadeiro. Mas a heroína e seus pais, e os
pretendentes, pertencem ao domínio da fantasia. Não existe gente como
aquela de verdade, digo do ponto de vista físico. Se fosse para fazer
uma animação 100% real, você pode estar certo de que nós, da Pixar,
teríamos feito Valente em live action.”
Embora seja uma companhia jovem, o sucesso da Pixar e seu impacto
sobre as novas ferramentas da animação já levaram ao surgimento de
vários livros contando a história do estúdio e tentando explicar seu
extraordinário sucesso. A Pixar surgiu como divisão da Lucasfilm e só
ganhou esse nome quando George Lucas, numa decisão que a revista Total
Film definiu em 2004 como a sexta mais idiota da história do cinema,
vendeu a Graphics Group, como se chamava, para Steve Jobs. Foi quando
ela foi rebatizada como Pixar, uma combinação de ‘pixel’ com ‘art’. Com a
Pixar, a animação ingressou na era completamente computadorizada. A
ideia era fazer arte com pixels. Como a molécula que constitui a
matéria, o pixel é o elemento básico da construção da imagem digital.
Ela é feita por camadas, num processo lento e delicado, explica
Katherine.
Até chegar a fazer sucesso, a Pixar perdeu muito dinheiro de Jobs. Em
1991, associou-se à Disney para uma série de três animações. Foi assim
que foram surgindo os marcos do estúdio - Toy Story (1, 2 e 3), Carros (o 1), Up – Altas Aventuras.
“Não conseguiria ser sucinto na tentativa de explicar o sucesso da
Pixar”, diz Andrews. “Seria precioso um livro inteiro só para isso, mas
alguns elementos foram decisivos. O entusiasmo de John (Lasseter), que
reuniu uma equipe jovem e motivada; o fato de ele delegar decisões e
transformar cada projeto numa aventura ao mesmo tempo individual e
coletiva – todos opinam e contribuem, mas quando o filme é seu, é seu; e
finalmente, o tempo que é despendido nos roteiros. O de Valente trata da heroína que precisa se superar, para crescer emocionalmente, e da família que precisa superar seus traumas e medos.”
Uma maldição transforma a mãe num urso, justamente o animal, em toda a
criação, que o pai, o rei, mais odeia (e dedicou a vida a destruir).
Forma-se a inusitada situação de a heroína ter de proteger a mãe do
próprio pai, numa trama cheia de duplos e significados ocultos. Isso não
corre o risco de transformar Valente numa narrativa para
adultos, mais do que crianças? “A grande inovação da Pixar talvez tenha
sido justamente buscar o crossover, fazendo filmes não apenas para
crianças, mas para a criança que resiste nos adultos. Nossas histórias
possuem um certo grau, não vou dizer profundo, mas complexo, de
elementos e sentimentos. Tratam da perda, da dor, da superação. Isso é
adulto? Com certeza. Mas as crianças dispõem hoje de mais informação que
em qualquer época da história. Aos 5 anos, uma criança já sabe hoje
mais do que um adulto de 50 no passado. O que ela ainda não sabe é
processar as informações. Os filmes da Pixar oferecem ferramentas para
isso. Valente é sobre uma garota que se autodescobre e amadurece”, resume Andrews.
Colaborou: Vagner Amorim
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