Viagens no tempo povoam o imaginário sci-fi por décadas e também
servem de inspiração para diversos roteiristas destilarem suas teorias
em aglomerações mágicas de ficção, caos e fantasia. Exemplos são as
obras cinematográficas como "Somewhere in Time" de Jeannot Szwarc ou "A
Sound of Thunder" de Peter Hyams.
Paradoxos temporais permeiam a literatura de ficção científica
desconstruindo a lógica do tempo linear - abraçando o tempo-espaço -
rumo ao encontro do absurdo momento do intrínseco encontro com o passado
e/ou futuro. Não obstante, clássicos como “The Time Machine” de H. G.
Wells, lançado em 1895 e “A Connecticut Yankee in King Arthur's Court”
do lendário Mark Twain, lançado em 1889 ou “The End of Eternity” por
Isaac Asimov e as obras do espanhol J. J. Benítez demostram o quão
longínquo foram os viajantes do tempo na arte.
Mas poucos trabalhos conseguiram – paradoxalmente – serem tão
fincados no chão ao ponto de simplesmente não usarem efeitos - e sim se
sustentarem da própria construção enigmática para se consolidarem como –
ironicamente - obras atemporais como Primer (2004). A obra faz parte
deste seletíssimo grupo de filmes harmonicamente completos,
perturbadoramente instigantes. Lento, meticuloso e desafiador são os
primeiros atributos desta insana composição orquestrada sob a batuta do
então jovem Shane Carruth.
Para o trabalho do americano Shane Carruth, dois engenheiros começam a
elaborar um obscuro projeto. Há de ressaltar que Carruth é formado em
matemática e também foi engenheiro de softwares. Diálogos confusos,
técnicos, intrigantes como um jogo maçante sem vencedor. As respostas
não são qualquer tipo de opção dada por Carruth – que também atua neste
trabalho. Alguns outros elementos somados – como um jazz dopante
minimalista – se espremem nas bordas. A câmera do diretor é uma entidade
estática, há cortes - como pálpebras vagarosamente se fechando e
rapidamente em suspensão - também há cores úmidas sufocantes e/ou
quentes diálogos incipientes.
Uma voz em off nos permuta observações no passado. Como um
visualizador de sensações ocorridas. Proporcionalmente ao avanço da
película é também sua febre de sentidos. Sua estabilidade é a nossa
assim como os desdobramentos também são sentidos. Como curtos-circuitos
de dados sendo jogados em proposições bicondicionais em nossas mentes
intrépidas.
Em certo momento os próprios atores – Shane e David Sullivan – mergulham
em suas próprias ansiedades em percorrer os espaços do conhecimento, ou
seja, desvendar o que estão fazendo. Shane Carruth nos leva por
caminhos inebriantes, sem ilusionismos ou jogos virtuais frivolamente
difíceis.
Há em Primer a certeza que as leis da física estão sendo respeitadas.
Assim como no “Paradoxo da Duplicação Cumulativa” os personagens em
algum instante atravessam a tênue linha do tempo. Não há mais certo ou
errado, há apenas a realidade múltipla dos fatos.
O desequilíbrio contínuo de cada membro desta partícula presente:
Nós, Shane Carruth, sua família, o mundo lá fora. Embriagado: pelo não
delírio, não pela utopia científica e sim pela certeza formigante da
alteração: Dos sentidos, da cronológica recepção dos dados. De vários
eus soltos numa anárquica - sem protagonismo - tensão de forças. Da
corrupção humana prevalecendo ao sonho - já decapitado do futuro -
debatendo-se nas cordas temporais.
Primer foi objeto de culto desde seu lançamento. Há gráficos e fãs
apaixonados pela internet dispostos a explicar o trabalho. Seu
baixíssimo orçamento e sua proposta (des)lineante certamente contribuiu
para que fosse alçado na condição de um pequeno clássico do cinema
independente americano.
Como um verdadeiro conto repentino, sem oxigênio, sem gravidade.
Shane Carruth subverte a lógica das montagens aleatórias de um cinema de
apelo rumo ao universo capaz de criar pequenas legiões de adoradores
prontos a desmontar suas peças - como uma nebulosa máquina - e filmes -
incapazes de ler suas criptografias - no entanto, nascidos da profunda
inspiração de suas concepções labirínticas.
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