Todos os dias pela manhã, Chivolvap Candreva escrevia longos versos, ensaios e outras construções enigmáticas no bistrô Zerkalo perto do centro da capital flutuante. Zerkalo era frequentado por espécimes cibernéticas das empresas exteriores e lúdicos artistas mercenários do apocalipse. Apesar das intensas sinfonias metálicas dos transeuntes, o velho escritor trabalhava alucinado a fim de terminar sua obra - quem sabe - um dia.
Há tempos se indagava o que porventura havia acontecido. Passaram-se séculos. O sol estava prestes a se tornar frígido em toda a sua grandeza e não seduzia mais os otimistas como dantes. Candreva não entendia às razões absurdas - que deuses e tecnocratas científicos tinham - de mantê-lo vivo por todo este tempo.
Suas articulações tremiam soltando a poeira que orbitava em sua face na ausência oceânica dos ventos, estes, seres belos e perfeitos que já deixavam saudade.
Estudado pelos nobres ganhadores dos prêmios máximos das evoluções científicas que vieram dos países em reconstruções mágicas, estes no entanto, de fato, não responderam suas indagações. Certa noite - de calor sorumbático onde as janelas dos apartamentos despejavam um vapor que assustava os cães famintos sem destino - Chivolvap tentou o fim com seu pescoço enrolado em uma corda puída. Claro, não obteve a coragem necessária para este experimento derradeiro.
Ele estava cansado meus caros. Havia perdido os irmãos, tias, amigos e suas namoradas envelheciam enroladas em sua barba. Não teve filhos, ah se estivesse. No entanto, o tempo tem sido cruel com Chivolvap. Como um touro que jamais sucumbe aos golpes do facão indesejável. Como um líquido desejado pelos amantes da eternidade, que entretanto, como por acidente, foi embebido pela insânia matinal de um reles cronista suburbano.
As manhãs eram longas. As tardes como ampulhetas que traziam em si um inexaurível deserto. As bombas, os conflitos, o humano em demasia estraçalhando o mundo com os dentes. Chivolvap Candreva dormia em seu quartinho perto da biblioteca esquecida de livros diversos. Jamais lidos ou lidos sim, por todos os jovens que hoje não passam de cadáveres de lembranças nos pátios da relatividade. Às vezes, seu mundo se enquadrava pela janela e magnetizava a observação. Televisores ainda resistiam à febre holográmica irreparável nos arredores. Entretanto, poucos ainda o percebiam. "As distrações se tornaram a droga do presente". Dizia o velho Chivolvap para si mesmo.
À margem, sentado em sua mesma mesa há décadas, entre antes novos, agora desbotados garçons. Entre impetuosos jovens e hoje decadentes empresários e suas frívolas amantes encarecidas, Chivolvap bebia seu licor tirado de uma espécie de planta dos mundos recém-descobertos e - como um mago - escrevia a biografia das idas e vindas.
Era impressionante que apesar de sua vã sabedoria experimental - este maldito senhor da impertinente eternidade - ainda se surpreendia séculos após séculos...
- É o Sr. Chivolvap? Pergunta uma criança que puxava a mãe pelas mãos como se tentasse salva-la de alguma explosão meteorítica.
- Sim, é o que dizem. Respondeu - em uma ironia leve - que pesava menos que as asas de um rouxinol.
Chivolvap Candreva desfrutava a fama e o reconhecimento por sua própria tragédia. Seu drama havia sido encenado nos palcos dos atores destemidos. Virou objeto de entrevistas calorosas – até chorou certa vez para ganhar mais audiência – depois escolhia o isolamento. O subsolo fúnebre da insignificância. O ódio dos publicitários e a incompreensão das crianças. Entretanto, ter sido reconhecido em sua fisionomia cinzenta por esta última pequenina - que trazia em seu olhar o absurdo encantamento da utopia da perenidade - acalentava sua mágoa com a morte e reconhecia no humano algo de arrebatador, além de qualquer utopia poética.
Será que no limiar de suas perturbações onipresentes um sentido havia passado despercebido. Qual? Não se sabe. São tão desconhecidos quanto os pensamentos do outro. O próprio Sr. Candreva relutava em acreditar que séculos de existência ainda não lhe trazia a clarividência reluzente que depreendia daquele minúsculo ser. Nada mais atemporal que as razões humanas.
Qual seria o segredo oculto, o oblíquo e mandingueiro paradigma que mantém vivo a todos? E os outros? E os que já se foram? Por que foram? O que procuravam?
Pobre Chivolvap Candreva. Para ele todos eram poetas. Todos escreviam suas histórias nos espaços em branco entre os segundos. Assim, sobreviveriam à sua própria humanidade.
Como um clamor, intemporal.
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Fotografias | Robert Doisneau
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