Por José Luiz Braga
Fazer pesquisa solicita uma diversidade de reflexões e gestos mais ou
menos complexos. É por isso que não vamos diretamente a campo para investigar – fazemos antes um cuidadoso planejamento, o qual se expressa em um
projeto de pesquisa. Como o projeto vai se desenvolvendo ao longo do próprio
trabalho de investigação (não paramos nunca de planejar), podemos chamar
as fases iniciais de pré-projeto – ou, mais inicialmente ainda, de uma proposta
de pesquisa. Assinalo que estou enfocando particularmente esse planejamento
inicial: a proposta.
Quero enfatizar a particular centralidade, nesse planejamento, do problema
de pesquisa. Só pesquisamos porque temos dúvidas a respeito de alguma questão
do mundo. É lógico portanto que as dúvidas que temos (e que serão expressas
no problema da pesquisa a realizar) devem comandar todo o trabalho de investigação – desde a busca das teorias e conceitos relevantes até a observação
da realidade (coleta de dados), o tratamento desses dados e as conclusões ou
inferências –, que correspondem ao conhecimento desenvolvido a partir do
problema que nos moveu a investigar.
Geralmente os manuais de metodologia de pesquisa enfatizam como ponto
de partida para investigação uma hipótese de pesquisa. Esta se baseia na afirma-
ção (hipotética, justamente) que seria investigada a fim de confirmarmos, ou
não, se efetivamente corresponde aos fatos. Consideramos que, nas pesquisas
qualitativas, essa insistência pode levar a equívocos.
A pretendida necessidade da hipótese de pesquisa leva a um esforço do pesquisador para apresentar alguma coisa que seja aceita como tal. Como nós sempre
temos idéias, impressões e propostas referentes aos temas que nos interessam
(e que nos motivam a pesquisar), é fácil decidir que uma dessas proposições é
nossa hipótese. Tipicamente, entretanto, se trata de premissas ou de sacações (no
dicionário Houaiss: “idéia, invenção, lampejo”. Refere-se ao habitual anglicismo
insight). Os lampejos correspondem àquelas idéias explicativas ou interpretativas que acabamos descobrindo de modo espontâneo por nos envolvermos continuadamente com um tema, por experiência prática ou por leituras.
O processo do insight, ou lampejo, seria o seguinte. Trabalhamos com um
assunto qualquer (por exemplo, questões referentes à estética publicitária ou
à violência na TV, entre outras). Observamos o que as pessoas fazem e dizem,
lemos a respeito. De repente percebemos perspectivas que ninguém parece ter
ainda notado – é o nosso insight. Como estamos pretendendo fazer uma pesquisa, a forte tendência é tomar essa idéia como nossa hipótese – nos propomos
a pesquisar para ver se é ou não verdadeira.
Dificilmente seria uma boa hipótese. Trata-se talvez de um bom ponto de
partida. Mas se o final da investigação nos levar de volta a ele, apenas fizemos um
círculo para chegar ao lugar de onde saímos, confirmando o que já sabíamos.
Seria possível dizer (alguns pesquisadores nessa situação efetivamente o
dizem): “Mas talvez a gente acabe provando que a hipótese não é verdadeira
e, portanto, há realmente alguma coisa a investigar”. Além de ser frustrante
fazer uma pesquisa apenas para provar que estamos errados, isso dificilmente
ocorrerá. Primeiro, porque, motivados pelo insight, trabalharemos tendencialmente para provar essa idéia – gerando uma cegueira involuntária para todos os
dados que a contrariem. Segundo, porquanto provavelmente uma idéia gerada
por forte envolvimento com a situação é mesmo verdadeira (isto é, válida para
o espaço e conjuntura em que foi proposta) e se sustenta pela própria constatação
ao vivo, sem precisar de pesquisa para o demonstrar.
Não estou sugerindo que se jogue fora aquela idéia brilhante (seria frustrante, não é?), mas apenas que ela não seja usada como hipótese de pesquisa.
Mais adiante faremos sugestões de bom uso para os insights (se eles existirem).
Contudo, desde já assinalamos que não é preciso ter idéias brilhantes iniciais,
fulgurações conceituais ou propostas salvadoras.
Às vezes você tem em mãos (se tiver, mas não é necessário) uma hipótese
de trabalho. Esta, diferente da hipótese de pesquisa, é usada como base para organizar a observação. A questão (ou problema da pesquisa) pode tomar então a
seguinte forma: se esta hipótese é verdadeira (e trabalharemos como se fosse),
o que poderemos descobrir sobre os processos em pauta, estando munidos de
tal afirmação? Note que aqui não vamos investigar a hipótese, mas sim tomá-la
de antemão como verdadeira e usá-la como modo ou instrumento para direcionar as observações.
Para evitar, em uma proposta de pesquisa, confundir premissas, lampejos
e hipóteses de trabalho com hipóteses de pesquisa, talvez a melhor tática, para
o iniciante, seja a de não apresentar nenhuma hipótese pretendida como “de
pesquisa”. Em vez disso, apresente diretamente seu problema de pesquisa.
A DÚVIDA E A CURIOSIDADE COMO BASE
Dissemos que ter lampejos, idéias brilhantes iniciais e hipóteses de pesquisa
não é necessário. Outra coisa, entretanto, é fundamental: curiosidade. É preciso
estar curioso a respeito de uma situação ou tema. Ou seja: deve-se ter dúvidas,
reconhecer que não sabemos alguma coisa sobre a questão de nosso interesse.290
comunicação & educação • Ano X • Número 3 • set/dez 2005
É por isso que um problema de pesquisa toma, freqüentemente, a forma de
uma pergunta. “O que será que...?”; “Como tal coisa se caracteriza?”; “Que sentido tem...?”; “Por que tal processo acontece?”; “Que diferenças existem entre...?”;
“Quais as formas diversificadas e variações de tal processo comunicacional?”.
No espaço da comunicação ou da educação, não é difícil encontrar problemas, situações problemáticas, dificuldades, estímulos à curiosidade. O espaço da
comunicação, para você, pode estar relacionado a uma formação em determinada
área (jornalismo, publicidade, relações públicas, audiovisuais); a um campo
de interface (outras formações sociais/culturais com percepção de questões
comunicacionais); a uma experiência profissional correlata; a leituras sobre
questões pertinentes; ou até mesmo à simples situação de usuário interessado
da mídia (espectador de programas de TV, leitor de jornal, usuário da internet,
aficionado de filmes cinematográficos etc.). Na educação, os problemas práticos
de obter aprendizagem, de aprender, de organizar e gerir atividades de ensino
podem estar ligados a todas as atividades humanas e sociais.
Ora, não é qualquer não saber que pode gerar diretamente pesquisa. Vamos afastar alguns não saberes a fim de evitar riscos. Primeiro, aqueles que,
para serem supridos, basta uma ida à biblioteca. Eu não sei uma porção de
coisas, entretanto, posso prever que alguém saiba (tipicamente: o especialista, o
professor, os livros). Nossas dúvidas, aí, não levam à pesquisa, mas ao estudo.
Claro que, em uma pesquisa, aparecem também questionamentos, que serão
resolvidos na biblioteca ou em consulta a especialistas. Mas não formam o eixo
da pesquisa. São complementares.
Além disso, faça outra triagem: distinga problemas de conhecimento de problemas práticos. São os primeiros que direcionam à pesquisa. Um problema prático
pede solução, a qual é geralmente desenvolvida por meio de interferências no
ambiente mesmo das situações problemáticas, tipicamente profissionais (“O que
fazer para que...?”; “Como obter mais qualidade em tal processo?”; “Como evitar
equívocos de tal tipo?”; “Como resolver com mais eficiência este processo?”).
Quando tais problemas de situação são mais complexos, talvez seja necessário
mais do que agir diretamente – e aí queremos trazer aportes científico-tecnológicos.
Podemos então escrever elaboradas propostas, bem baseadas em conhecimento
acadêmico, para o encaminhamento de soluções. Ainda assim, não se trata de
pesquisa. Certamente podemos pensar em pesquisas de desenvolvimento, feitas
em zona intermediária entre a pesquisa de conhecimento e ações propositivas
práticas. Essa possibilidade não será entretanto aqui estudada.
Ficaremos, então, com os problemas de conhecimento: “o que é preciso saber
sobre tal situação?”; “O que deveremos descobrir sobre ela para que nosso conhecimento da realidade em foco seja ampliado?”.
Como se pode perceber, podemos derivar um problema de pesquisa de um
problema prático. Dada uma situação-problema na realidade, se essa situação
é suficientemente complexa, em vez de procurar e propor soluções concretas
imediatas, tentaremos direcionar a reflexão para: “como aprofundar meu conhecimento sobre essa situação antes de buscar soluções?”.
O trabalho de aprofundar conhecimentos seria a pesquisa acadêmica. No
caso de um mestrado, resultará em uma dissertação. As soluções concretas
podem ser decorrentes da dissertação, mas já não fazem parte dela. Serão, se
for o caso, expectativa para depois; e resultado de aplicações posteriores dos
conhecimentos obtidos sobre a realidade social.
Por outro lado, não precisamos partir diretamente de situações problemáticas
da realidade. Podemos começar com preocupações e curiosidades mais abstratas
ou conceituais, com dúvidas sobre o sentido das coisas. Neste caso, porém, não se
esqueça – em algum momento na elaboração de seu projeto – de relacionar essas
questões com uma realidade específica. Pois não se investigam abstrações. Salvo nas
pesquisas especulativas (mais próprias do trabalho em Filosofia ou nos espaços
mais rarefeitos das fronteiras epistemológicas das Ciências Humanas e Sociais,
que exigem longa formação e experiência prévia em pesquisa), trabalharemos
tipicamente com investigações sobre questões relacionáveis diretamente à realidade social/expressional da comunicação ou da educação.
Muito bem... até aqui tivemos exclusões (do tipo não faça isto). O que não
permite avançar-se muito, porque a questão não é o que não fazer, mas sim o
que fazer sobre o que não sabemos, sobre nossa curiosidade, que se deve expressar
em um não saber especificado, para gerar pesquisa.
PARA COMEÇAR A CONSTRUIR O PROBLEMA DA PESQUISA
Sabemos, então (aproximadamente), o tipo de problema que nos interessa
para fazer pesquisa, em torno de um tema de nosso interesse. Mas ainda não
temos certeza de como elaborar e expressar um problema de pesquisa.
É claro que naturalmente não há receitas para isso. Constrói-se um problema de pesquisa de muitas e muitas formas diferentes. Além disso, construir
um problema de pesquisa não corresponde simplesmente a descobrir a questão
e a escrever. É um processo de elaboração que se pode desenvolver em várias
fases diferentes da própria pesquisa – evoluindo à medida que estudamos
autores, fazemos pré-observações e pensamos metodologicamente sobre como
abordar nosso objeto.
Mas nossa questão aqui – felizmente – é bem mais simples. Trata-se apenas
de prefigurar um problema de pesquisa; em dar a partida, em ter um questionamento inicial em que se agarrar para poder depois, já na pesquisa, dar outros
passos.
Façamos então o seguinte.
Como primeiro passo, escreva tudo o que você já sabe sobre o tema de
seu interesse. Inclua aí dados de experiência prática, observações casuais que
tenha feito sobre o objeto que lhe chama a atenção, leituras recentes, leituras
ad hoc (ou seja, já realizadas em decorrência de estar pretendendo elaborar
uma proposta sobre o tema). Não se esqueça de incluir, é claro, aquelas idéias
fulgurantes, as sacações referidas antes (se existirem, mas lembrando que não
são necessárias).
Lembre-se também de identificar as diferentes origens do que você já
sabe (leituras, experiência etc.). No caso de leituras, não se esqueça de citar
os autores, livros, número das páginas.
Note: esse texto não é ainda o seu projeto. É apenas um documento preparatório, uma peça para ficar nos bastidores e que não irá à cena. Sinta-se livre,
portanto, para escrever o que quiser, da forma que preferir. Nenhum professor
vai ler isso – você estará escrevendo para si mesmo.
Só o fato de ter alinhado essas proposições, se você tem sorte, já lhe
terá deixado cheio de dúvidas. Supere aquelas existenciais, as referentes a sua
competência para tratar do assunto e para fazer pesquisa, e selecione apenas
as que dizem respeito ao próprio objeto.
Passemos então ao segundo passo da elaboração – sempre nos bastidores,
sempre escrevendo apenas para você. Utilize as dúvidas percebidas, mobilize
sua curiosidade e comece a escrever perguntas; tudo que você consiga perguntar.
Nesse momento, não se preocupe se são relevantes ou não, se são brilhantes ou
simples. É uma fase de brainstorm (se não sabe o que é, que tal ir ao dicionário?).
O prêmio aqui não é para as boas questões, mas para a maior diversidade.
Você poderá então passar ao terceiro passo, que é, naturalmente, a crítica das perguntas. Distinga as que expressam apenas falta de informação e de
maiores estudos. Você desconfia que esse conhecimento já existe em algum
lugar e que precisará dele para fazer avançar a pesquisa, mais tarde. Guarde
cuidadosamente tais perguntas para que o ajudem a procurar informações, mas
perceba que elas não comporão diretamente seu problema de pesquisa.
Separe ainda as questões práticas, isto é, aquelas que pedem soluções
concretas, ações, propostas diretas sobre o que fazer. Esse conjunto não tem
uso central para a construção do problema de pesquisa. Mas reserve-as para
uma segunda rodada de brainstorming. Verifique aí se não é possível derivar
delas dúvidas de conhecimento. Além disso, se são perguntas práticas complexas
e relevantes, podem servir como meta posterior à pesquisa, ou seja, a pesquisa buscará conhecimentos que sejam depois úteis para encaminhar soluções
para os problemas de realidade (e isso deve, mais tarde, ser indicado em sua
proposta).
Discrimine também as perguntas para as quais você já tem resposta. É
fundamental ser muito sincero com você mesmo. A resposta pode ser aquela
sacação que você gostaria muito que fosse a conclusão da pesquisa – mas aí não
vale, porque esta já estaria concluída antes de ser começada. Pode ser, ainda,
que a resposta seja uma proposição argumentativa elegantemente direcionada
pela pergunta. Nesse caso, trata-se do que chamamos de pergunta retórica, ou
seja, ela não pede uma resposta, como uma questão comum, apenas encaminha
um argumento. Exemplo: “Seriam os usuários de TV passivos diante da programação que recebem?” – encaminhando a resposta: “Não, pois percebemos
que cada espectador reage diferentemente aos programas, gerando variadas
interpretações. Logo, estão ativamente fazendo interagir seus repertórios pessoais
(variados) com o que diz e mostra a programação”.293
Para o caso das perguntas que já têm ou presumem respostas, veja se as
proposições feitas na primeira fase de nosso exercício (alinhar tudo o que você
já sabe sobre o tema) mais ou menos coincidem com as respostas implícitas. Em
caso negativo, pense em transferir esse material para aquele documento preparatório, já agora na forma de propostas afirmativas e não mais interrogativas.
Separe ainda as questões amplas demais, muito genéricas e vagas, que você
não consiga relacionar a uma busca especificada de conhecimento. Lembre-se de
que você vai investigar (ou seja: vai olhar sistematicamente um pedaço da realidade) para procurar encaminhamentos para seu problema. Assim, perguntas
muito amplas ou vagas não são pertinentes – ou você não saberia o que olhar
na realidade; ou teria que observar uma realidade muito ampla, diversificada
e complexa (e não daria tempo).
Por exemplo: “Como a comunicação midiática modifica os processos de
aprendizagem tradicionalmente ancorados no livro?”. Interessantíssima questão.
Entretanto, não é diretamente pesquisável. Se eu tiver suficiente experiência na
área (interface comunicação/educação) e as leituras adequadas, poderei escrever um belo ensaio em, digamos, dois meses de trabalho. Mas não conseguirei
investigar a questão diretamente nesse nível de abrangência, nem mesmo em
dez anos de pesquisa.
Distinga o conjunto acima, mas não jogue fora essas perguntas. Elas talvez
tenham forte utilidade para definir o horizonte em função do qual o problema
pode ser construído. É por isso que insisti antes na palavra diretamente. Pois
quem sabe indiretamente signifique questões relevantes. Você poderá então
tentar derivar perguntas mais específicas a partir delas – nesse caso, mantenha
as questões gerais como seu horizonte e construa o problema em torno das
específicas.
É possível que você tenha, no seu elenco, algumas perguntas do tipo sim/
não. São aquelas que oferecem apenas uma possibilidade binária exclusiva de
resposta: ou uma coisa, ou outra. É raro (embora não impossível) que essas
questões sejam bom eixo de pesquisa. Primeiro porque, quando são tão dramaticamente contrapostas, já temos uma preferência por uma das alternativas (o
que nos remete às perguntas com respostas prontas). Depois, porque a realidade sociocultural e o sentido das coisas dificilmente são tão simplificados para
permitir dualidades mutuamente excludentes. Alternativamente: ou a contraposição é justamente simples, e não exige pesquisa, ou é caso antes de tomada
de posição do que de busca de conhecimento, e não exige pesquisa.
O mais freqüente é que uma pergunta desse tipo na verdade esteja reduzindo uma realidade mais complexa, que não deveria portanto estar sendo
apreendida em termos de ou isso ou aquilo. E aí, qualquer que seja a alternativa resultante da investigação – sim ou não –, torna-se pobre ou claramente
falseadora da situação.
Assim, se você tem alguma pergunta elaborada dessa forma, em vez de
descartá-la, procure derivar dela questões mais sutis ou complexas – do tipo
Como? –, que se mantêm abertas, pois podemos encontrar diversos como em
vários níveis (ou seja, diferentes modos e formas de um processo ou fato). Ou,
ainda, tente perguntas como: “Que diferenças podem ser percebidas [em alguma
coisa que parece em geral monolítica]?”. E também: “Que semelhanças podemos
encontrar [em coisas que parecem diferentes ou isoladas entre si]?”. É claro
que interrogações dessa natureza dependem de que já estejamos desconfiados
das diversidades (ou das similaridades, na segunda alternativa). Mas note que
a questão não é “Há diferenças internas na situação dada como monolítica?”
(resposta sim ou não). Procurar diferenças e variações decorre da prévia perspectiva do sim – e a busca será de quais?, questão aberta à descoberta.
Feitas as distinções anteriores, você deve ter agora um conjunto (mesmo
pequeno) de perguntas mais ou menos específicas, mais ou menos indicadoras
para o trabalho de investigação (observação, trabalho de campo, exame de
textos e materiais audiovisuais – obtenção de dados).
Se forem muito poucas e você sentir que estão ainda fraquinhas, tente uma
segunda rodada de geração de perguntas – novas ou derivadas das perguntas
amplas, das perguntas práticas e das do tipo sim/não. Ao final de um certo
exercício nessa direção, tendo chegado a um conjunto de questões mais ou
menos aceitas (por você mesmo, é claro), passaremos ao exercício seguinte –
que será nossa quarta fase, a de sistematização das perguntas.
Note que não é preciso ter um grande número de interrogações para construir
um problema de pesquisa. É melhor mesmo que sejam poucas, pois o importante
é a consistência do conjunto e, particularmente, sua relevância e possibilidade de
efetivamente demarcar a curiosidade que você tem sobre o assunto.
Como quarto passo, procure então organizar as perguntas – mais relevantes e secundárias; mais amplas e mais específicas; independentes entre si ou
relacionadas; relacionadas em paralelo ou por subordinação; mais teóricas ou mais
voltadas para a busca de dados etc.
Os modos de organizar vão depender, é claro, do conjunto específico de
questões que você gerou. O objetivo principal, aqui, é ultrapassar o nível de
perguntas soltas e chegar a um padrão de consistência em que se perceba um
conjunto integrado, internamente relacionado, de perguntas.
Faça isso como um jogo de armar – tente uma alternativa, um “desenho”,
e depois outro e outro, até ficar satisfeito. Não fique, porém, satisfeito cedo
demais: brinque um pouco com as possibilidades.
No decorrer do processo, é possível que você tenha a tendência de reformular algumas questões, de criar outras, de substituir alguma coisa. Sinta-se à
vontade: as perguntas são suas.
No quinto passo, quando tiver chegado a um conjunto mais ou menos
consistente, veja se consegue escrever um pequeno texto para “explicar” o que
é tal conjunto, por que ele é interessante, como efetivamente configura sua
curiosidade sobre o tema.
Não é preciso insistir que esses exercícios são iterativos, isto é, podem (e
devem) ser reiterados, em um processo de ida e volta entre: as proposições
iniciais sobre o tema; as perguntas (em sua variedade de tipos); a crítica das 295
perguntas; o conjunto de construção de consistência no questionamento; e o
texto sobre o interesse das perguntas.
Os documentos elaborados nas diferentes fases do exercício não são ainda
a proposta de pesquisa, porém constituem aqueles documentos preparatórios, de
bastidores. Mas ao chegar a um conjunto consistente de perguntas (para sua
satisfação) e conseguir o texto explanatório sobre seu questionamento, você
terá então os materiais necessários para começar a escrever a proposta. Faça,
assim, um texto claro, pensando em um leitor que possa compreender seu
projeto. Use o que for possível e interessante, dos documentos preparatórios,
no texto da proposta. Lembre-se de que você não está escrevendo um artigo;
dessa forma, evite respostas antecipadas e um tom de terminalidade. Mantenha
o texto aberto para futuros desenvolvimentos e não esconda suas dúvidas.
Não se preocupe excessivamente com o atendimento desses passos, como
se fossem uma receita rígida. Tome suas próprias decisões. Tais indicações são
genéricas, e sua construção de problema é específica. Você pode, então, se sentir
mais produtivo deixando de lado alguma coisa e inventando outras táticas.
RELAÇÕES ENTRE PROBLEMA E OBSERVAÇÃO
Em uma fase inicial, os desenvolvimentos teóricos e o planejamento da
observação podem ser ainda bastante preliminares. No momento – e com rela-
ção à construção do problema de pesquisa –, quero apenas chamar a atenção
para duas ou três idéias básicas sobre relações entre o problema de pesquisa
e o trabalho concreto de investigação.
Deve haver uma forte coerência entre o problema de pesquisa e a percepção da realidade (investigação propriamente dita). Mesmo que a previsão
detalhada das verificações a serem feitas corresponda a uma etapa posterior
de planejamento, é importante pensar desde já no que você pretende observar
sistematicamente.
Primeiro, para prefigurar o que será seu trabalho de campo. Você vai entrevistar pessoas? Quantas? Onde? Examinará produtos midiáticos (programas
de TV, sites de internet, fotografias)? Acompanhará experiências pedagógicas?
Quais, quantas, segundo que perspectivas? Irá observar diretamente pessoas em
atividade no mundo real (interagindo na internet, o público de um festival de
cinema, uma redação de jornal, uma escola)? Que situações específicas interessam? Como vai observar (participando do grupo, apenas olhando, fazendo
perguntas)? Para obter que tipos de dados?
Como se vê, uma listagem seria infinda. Pensar em suas alternativas específicas é relevante, porque essa vai ser a investigação propriamente dita. Você
ocupará uma boa parte do seu tempo fazendo tais coisas – e não deve ser
apanhado de surpresa, na hora da investigação, sem saber direito o que fazer,
nem descobrir de última hora que aquele problema exige certas observações.
Mas há uma outra razão para pensar nisso desde o começo. Você deve
decidir se as observações que está pensando em fazer são coerentes com o
problema de pesquisa que começou a construir. Aquele problema, apresentado
daquele modo, será adequadamente gerador de conhecimentos através dessas
observações?
Assim, prefigurar as observações é um bom teste para a qualidade da
construção do problema. Caso as observações imaginadas não pareçam estar
bem articuladas com o problema, tente decidir se outras seriam melhores,
mais ajustadas. Mas também é possível que as observações pretendidas sejam
interessantes. Neste caso, faça uma boa revisão em suas perguntas para ajustá-
las ao trabalho investigativo que está querendo fazer. Elas serão aperfeiçoadas,
ajudando a desenvolver o problema de pesquisa.
Você terá, assim, iniciado – concretamente – seu projeto de pesquisa. A
partir daí, as buscas teóricas virão – a serviço do projeto e não como abstração
desconectada. Pode ser um bom começo.
Resumo:
O presente artigo, dirigido a
estreantes em pesquisa, trata dos movi
mentos reflexivos e construtivos iniciais
para desenvolver um projeto. Depois
de propor que a habitual insistência em
hipóteses de pesquisa pode levar a equí
vocos, quando se trata de pesquisas qua
litativas, enfatiza o trabalho preliminar de
construção do problema de pesquisa.
Explicita características mínimas de um pro
blema adequado, afastando tipos de proble
ma pouco promissores. Apresenta então,
sobre esta base, indicações práticas para
tal construção, através de um exercício em
cinco passos ou fases. Finalmente relaciona
a previsão da observação (investigação
propriamente dita) com a construção do
problema.
Palavras-chaves: projeto de pesquisa,
problema de pesquisa, investigação.
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