A morte
Algo em que todas as pessoas crêem, sem exceção, é a
morte! Cada uma está convicta de sua chegada. Esse é um dos poucos fatos
sobre o qual não reina qualquer controvérsia e qualquer ignorância.
Muito embora todos os seres humanos contem, desde a infância, com o fato
de ter de morrer um dia, a maioria, no entanto, sempre procura afastar
tal pensamento. Muitos até se enfurecem, quando alguma vez se fala disso
em sua presença. Outros, por sua vez, evitam cuidadosamente visitar
cemitérios, desviam-se de enterros e procuram o mais depressa possível
desfazer novamente qualquer impressão, se porventura uma vez encontram
um féretro na rua. Nessa oportunidade, oprime-os sempre um medo secreto
de que um dia poderiam ser repentinamente surpreendidos pela morte. Medo
indefinido impede-os de se aproximarem com pensamentos sérios desse
fato inamovível.
Certamente não existe nenhum outro acontecimento que, apesar de sua inevitabilidade, seja sempre de novo posto tão de lado, em pensamento, como a morte. Mas também certamente nenhum acontecimento tão importante existe na vida terrena, a não ser o nascimento. É, contudo, notório que o ser humano queira ocupar-se tão pouco exatamente com o começo e o fim de sua existência terrena, ao passo que a todos os outros acontecimentos, mesmo às coisas de importância totalmente secundária, procure emprestar significação profunda. Investiga e perscruta todos os episódios intermediários com mais afinco do que aquilo que lhe daria esclarecimento de tudo: o começo e o fim de sua peregrinação terrena. Morte e nascimento são tão estreitamente ligados, porque um é conseqüência do outro.
Fonte: Na Luz da Verdade Mensagem do Graal de Abdrushin
http://www.br.abdrushin.name
Há quem torça o nariz para a morte e
para tudo o que a lembre: funeral, cemitério, velório, caixão, etc. Pra
mim isso só tem um nome: frescura! Existe burrice maior do que viver
como se nunca fosse morrer? A respeito desse tipo humano que prefere
ignorar seu destino, Machado de Assis ironiza: 'O homem tem uma grande
vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o
universo ignora-o absolutamente” (Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Hoje é o dia consagrado àqueles que passaram desta pra... Melhor?
Como sabemos que é melhor? Não sabemos. Supomos. Esta suposição
baseia-se num tema bastante recorrente na literatura: a fuga ou negação
da realidade. Quando nego minha realidade, eu me refugio nalgum ponto
imaginário ou da memória. Este ponto se supõe sempre melhor que a
realidade. Vem daí a concepção de que uma suposta realidade posterior à
morte seja melhor que a realidade vivida aqui, e há quem leve esta
lógica ao pé da letra. Mas, surpreendidos pela morte de alguém que
amamos, podemos empreender um movimento em direção à memória que não é
necessariamente uma fuga, mas traz consolo e conforto para a alma dos
que ainda ficam aqui, vislumbrando este horizonte de vaidades e ilusões.
É aí que entra a importância deste dia.
O dia de finados é a celebração da memória daqueles que um dia
estiveram, física e de diversos outros modos, em nossas histórias de
vida; pessoas que conviveram conosco, que partilharam de nosso lugar no
tempo e no espaço e de quem herdamos um pouco do que somos. Lembrar-se
deles é recordar o passado e imprimir, já no presente, um futuro movido
por estes laços de afeto.
Mas antes de falarmos da morte na literatura, convém ressaltar, a
título de curiosidade, que esta é uma data do calendário cristão, embora
a tradição de recordar os mortos seja bastante anterior à cultura
judaico-cristã. Na Bíblia temos registros da visitação aos mortos entre
os judeus. Foi visitando o santo sepulcro que descobriram Jesus
ressuscitado. Olha aí a visitação às necrópoles como signo da
ressurreição. Quem evita ir a cemitérios, evita uma consciência
essencial para a vida em plenitude: a consciência da finitude de nosso
corpo, de nosso tempo neste espaço e da urgência em “amar as pessoas,
como se não houvesse amanhã, porque, se você parar pra pensar, na
verdade não há”. Afinal, o que é o amanhã diante da certeza de que
podemos ser surpreendidos pela morte a qualquer momento?
Os primeiros cristãos visitavam os túmulos dos mártires, para rezar
pelos que tinham morrido sem martírio. No século IV, a Igreja já
celebrava missa pelos mortos e, desde o século XIII, passou a dedicar um
dia do calendário litúrgico, para rezar por todos os mortos. O dia 2 de
novembro foi a data escolhida, porque no 1º dia deste mês celebram-se
todos os santos na Igreja Católica. Afinal, santo não é somente o
canonizado pelo papa, mas sim todos os que morrem em estado de graça ou,
como dizem nossos irmãos protestantes, morrem no Senhor. O dia 2 de
novembro é dedicado, portanto, a todos os mortos que não são lembrados
na oração, santos ou não.
As crendices populares também “canonizam” santos, espíritos a quem
se atribuem milagres, como é o caso de Severa Romana e Doutor Camilo
Salgado, além de Josephina Conte, a lendária moça do táxi,
conhecidíssima aqui em Belém, graças à literatura oral.
Independentemente da fé ou da incredulidade humana, o fato é que a
morte como mistério suprarracional, como fim ou como estágio transitório
entre mundos, é um tema fascinante e matéria-prima não apenas de
especulações filosóficas ou de estudos científicos, mas também da
literatura. É, portanto, um tema que ultrapassa os campos da religião.
Na Ilíada, de Homero, a morte é o recurso para a imortalidade, no
sentido de que o herói literário era aquele que arriscava sua vida em
combate. Se viesse a morrer, ficaria imortalizado na memória das
gerações posteriores. A morte como consequência ou símbolo da coragem
manteve-se como motivação temática até hoje, desde os poetas elegíacos.
Na Odisseia, Aquiles lamenta a brevidade da vida. Na literatura grega,
parece prevalecer a adversidade entre a vida, que é boa, e o fato de
deixarmos de existir pela morte. (Eurípides, Alceste, 692-693 – Feres:
“Na verdade, considero longo o tempo que se está debaixo da terra; a
vida é curta, mas, no entanto, doce.”).
Esta concepção que os gregos tinham da morte, em especial os do
período helenístico, tem muito a ver com o que nós hoje pensamos a
respeito. Foi nas Aulas de Literatura (assim mesmo, com iniciais
maiúsculas) de minhas queridíssimas Juruema Bastos e Socorro Simões, no
Curso de Letras da UFPA, que eu aprendi a reverenciar a morte como um
fato inevitável, como certeza absoluta, como mistério e como uma
motivação para valorizar a vida, através do que seria sua mais excelente
antítese paradoxal (Eurípides, Suplicantes, 775-777 – Adrasto: “Este
bem é o único, para os mortais, que, uma vez perdido, não é possível
retomar – a vida humana. Existem meios para alcançar as riquezas”).
As concepções da finitude da vida na matéria orgânica, que no século
XVIII tanto influenciaram os poetas árcades a pregarem em suas poesias o
princípio hedonista do Carpe Diem, estão presentes em Epicuro, Carta a
Meneceu (D.L. X. 124): “Todo o bem e todo o mal residem na sensação; ora
a morte é a privação da sensação”. Também na Carta a Heródoto (D.L. X.
125): “A morte nada é para nós, pois quando nós existimos, ela não está
presente; quando ela está presente, então já não existimos”.
De acordo com esta concepção, a vida acaba com a morte ou, com o
perdão do trocadilho, a morte acaba com a vida. Deixamos de existir com o
fim da vida orgânica de nosso corpo. Por isso devemos valorizar nosso
lugar no tempo e no espaço, pois um dia deixaremos de existir, ao menos
fisicamente.
Mas voltando a falar da reverência aos mortos, eu acredito que o
pensamento, na ausência da possibilidade de sua verbalização por meio da
linguagem facultada pela vida orgânica, é por si mesmo a forma mais
excelente de comunicação com o mundo espiritual. Pensamos, lembramos, e
logo a lembrança traz o outro do jeito que ele agora pode vir. Isso pode
ser um devaneio, para quem está acostumado a um raciocínio cartesiano e
materialista. Mas se o amor fosse condicionado à matéria orgânica, à
possibilidade de uma porção limitada de matéria ocupar lugar na dimensão
espaço-temporal, não seria amor. “O amor é o fogo que arde sem se ver” –
diria Camões, que também conhecia essa forma de comunicação com os
mortos:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder te,
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Essa supremacia do amor sobre a realidade antitética vida/morte é o
que diz Sófocles, Édipo em Colono, 1224-1227 (Coro): “Não ter nascido
prevalece sobre qualquer outra ideia. Mas quando se aparece à luz do
dia, a melhor sorte a seguir é ir, o mais depressa possível, para o
sítio de onde se veio.” Este sítio de onde se veio faz lembrar-me de uma
frase não menos poética de um padre católico: “Esta fome de felicidade,
é saudade do Infinito, é saudade do Paraíso, é saudade que a gente
tem”.
Todo amor é metafísico. Todo amor é infinito, heterogêneo,
pluriforme e, portanto, imortal. Se não superar esta certeza chamada
morte, amor nunca terá sido.
Fonte: http://www.orm.com.br
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