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"A música era a galinha dos ovos de ouro, mas eu não quis nem um pintinho" |
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Por Adriana Negreiros em 16.01.2013
Foto: Filipe Redondo
A jovem Heloísa Eneida estava sentada em um banco na Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, quando viu o músico Tom Jobim se aproximar. Ela estremeceu. Tom era lindo. Basta ver no YouTube as imagens dele cantando com Frank Sinatra para constatar que nenhuma mulher poderia resistir se o galã dissesse: "Estou apaixonado por você". Mas Heloísa resistiu. "Eu sou virgem", justificou na época. Tom deu a última cartada. "Onde você acha que encontrei inspiração para Garota de Ipanema?" Naquele verão de 1964, a música, composta dois anos antes, já era sucesso internacional, apesar de ninguém saber oficialmente quem era a musa inspiradora de Tom e Vinicius de Moraes. "Já desconfiava que fosse eu. Dois amigos haviam me dito", lembra Helô. Ainda assim, ela não deu corda ao músico. Prestes a se casar com o empresário Fernando Pinheiro, despediu-se com um beijo - que, por uma malandra virada de rosto dele, foi parar na boca - e deixou a praia com a cabeça cheia de pecados. "Se pensar é trair, então cometi a traição. Fui para casa pensando mil coisas."
Em 1965, a identidade de Heloísa Eneida seria finalmente revelada por Vinicius de Moraes nas páginas da revista Manchete. Ao lado de uma foto da moça - de biquíni, com as curvas que faziam os homens da época enlouquecerem -, o Poetinha escreveu: "Seu nome é Heloísa Eneida Menezes Pinto, mas todos a chamam de Helô. (...) Do nosso posto de observação, no (bar) Veloso, enxugando a nossa cervejinha, Tom e eu emudecíamos à sua vinda maravilhosa". Cinquenta anos depois de ser composta, Garota de Ipanema é a segunda música mais tocada no mundo, atrás de Yesterday, dos Beatles. A canção entrou no repertório do já cita-do Frank Sinatra, de Ella Fitzgerald, Louis Armstrong, Diana Krall e até Amy Winehouse. Mas a vida da musa inspiradora nunca foi só glamour. No início da fama, casou-se com Fernando, com quem vive há 46 anos. Teve quatro filhos - entre os quais a apresentadora Ticiane Pinheiro - e dedicou-se a eles. Só voltou a trabalhar quando a empresa de importação de ferro e aço do marido faliu. Endividou-se, brigou na Justiça com a viúva de Tom, descobriu que o filho caçula ficaria com sérias sequelas por causa de uma falta de oxigenação no cérebro aos 3 meses e foi traída. Enquanto grandes vozes cantavam os encantos da "coisa mais linda, mais cheia de graça", a própria enfrentava muitas barras-pesadas. Parte dessa história está no recém-lançado livro A Eterna Garota de Ipanema (Aleph). Aqui, Helô Pinheiro, 69 anos, conta mais. "Fui muito burra", repete.
Por que você resolveu escrever este livro?
Porque sabia que muita gente ia se identificar com minha história. Queria mostrar que a vida de uma pessoa pública não é feita só de alegria. Tem muita tristeza. Acham que tudo é maravilhoso, que você está em um pedestal e virou uma santa, mas não é por aí. E sou requisitada para contar minha história em escolas e embaixadas. Sempre me perguntam se tive caso com o Vinicius ou o Tom, como é isso de inspirar uma música... Aí pensei: "Tenho que escrever um livro!"
Muita gente acha que você teve um romance com Tom Jobim ou Vinicius de Moraes?
Nossa! Dizem: "Ah, vá, Helô, conta aí". E eu digo: "Gente, eu era tão inocente, tão pura... Tá bom: tão burra!" Talvez se fosse hoje, com essa experiência, eu tivesse tomado outro rumo. Tive uma educação muito castradora. E, na época, estava namorando o Fernando. Gostava muito dele.
Mas você achava o Tom atraente?
Lindo! Eu era virgem, achava que ele só queria brincar comigo, mexer no meu tesouro (risos). Mas é o tal negócio: "E se eu largar esse para ficar com o outro e não der certo?" O Tom bebia demais. Esse problema me travava. Mas eu me acho tão burra! O Fernando viajava com os pais e os irmãos, e eu ficava em casa, triste à beça. Se fosse outra menina, já ia pra balada! Não me perdoo. Eu ficava chorando... Mas gostava dele, que era alegre e brincalhão. Hoje digo: "Você está velho, não conte mais piadas, elas não têm mais graça".
O Tom foi seu padrinho de casamento e escreveu um bilhete em que dizia que você era paixão platônica...
Ah, e o que escreveu no meu ensaio da PLAYBOY (de maio de 1987)? Muito lindo... Tinha pitadas maliciosas: "...te espero na mesma esquina, já comprei o amendoim". Quando fui à casa dele, a Teresa, com quem era casado na época, foi encantadora. Até pensei: "Olha o estrago que eu ia fazer na vida deles". Depois, casou com a Ana e nos encontramos na casa do Vinicius. O Tom me olhou e disse na frente dela: "Como você não quis se casar comigo, casei com essa, que parece com você".
No livro, você deixa escapar um ressentimento por oportunidades perdidas depois ter virado a Garota de Ipanema. Culpa seus pais por isso?
Meus pais eram separados. Minha mãe tinha o dever de dizer ao meu pai tudo o que acontecia comigo e tinha muito medo de que eu fizesse algo errado. Então, quando chegavam produtores lá em casa para falar comigo, minha mãe já os despachava. Uma vez, vieram uns americanos e convidaram para participar de um filme. Eu teria que ir para os Estados Unidos com eles e usar fantasia de índia. "De jeito nenhum", ela disse. Mamãe também não me deixou fazer nada na TV Globo, nem participar do filme Rio, Verão & Amor. Todos os dias, eu tinha que estar em casa às 10 da noite.
Havia pressão para que se tornasse a nova Leila Diniz?
Os jornalistas queriam que eu incorporasse um novo "espírito Leila" após sua morte (em 1972). Diziam: "Ah, você é muito comportadinha, não vai para os bares?" Eu era boba e inexperiente. Os artistas iam para o bar, rabiscavam, conversavam, tocavam até a madrugada. Se usufruísse aquele momento com eles, bebendo, teria tido mais carinho e atenção dessas pessoas e vivido mais a cultura do Rio. Esse foi meu grande erro: deveria ter entrado na onda.
E o que seu marido achava disso tudo?
Dizia: "Com essa fama toda, vou casar com você rapidinho". Meus pais se separaram quando eu tinha 4 anos e sofri muito. Cresci dizendo que só me separaria se meu marido fosse do tipo que bate na mulher ou nas crianças, porque não queria que meus filhos sofressem com a ausência do pai. Com esse enfoque, ultrapassei muitos obstáculos no meu relacionamento. Houve coisa pesada.
Por exemplo?
Meu marido perdeu tudo, a firma dele faliu. Abri uma agência de modelos e ele ficou como empresário das garotas. Você sabe, modelos se oferecem para o empresário, para que ele arrume trabalho para elas. Não dá para acreditar até acontecer com você. Abri um campo para a gente sobreviver e fui destronada. Me senti como se tivesse sido levada para o lixo porque tinha surgido coisa melhor. Dá uma sensação de desprezo. Assim, em momentos de carência, tive outras paixões.
Quando passava por dificuldades, você pensava: "Poxa, mas eu sou a Garota de Ipanema!"?
Nunca. Quando viemos morar em São Paulo, por causa do trabalho, ninguém me reconhecia. Tive que batalhar. Fazia comerciais, cuidava das crianças. Consegui papel na novela Cara a Cara, da Band, e a burra - outra vez, burra! - pediu uma merreca. Depois a Globo me chamou para gravar no Rio Coração Alado. Meu corpo estava lá, mas minha cabeça estava em São Paulo, com meu filho doente, o Fernandinho.
O que ele tinha?
Um dia, fui chamada para um comercial do Chevette. Acordei às 4 e dei de mamar para ele, que roncava muito enquanto mamava. Eu contei para o Fernando: "O nenê não passou bem". E saí para gravar. Quando voltei, meu filho já tinha sido levado para o hospital, precisou de aparelho para respirar. Uma amiga que me esperava disse que meu filho não ia resistir: "E onde estava o pai?" "Não estava aqui", ela falou. Não era para ele sair: não tinha emprego, nada... Era para ficar em casa.
Quais foram as sequelas que seu filho teve por isso?
Sem oxigenação no cérebro, a parte cognitiva foi afetada. Não lê e não escreve. Tem 30 anos, parece 15.
Você acha que deveria ser mais valorizada no Brasil?
Com os 50 anos de Garota de Ipanema, vários estrangeiros vieram me entrevistar. Quando vou ao Japão, as pessoas me reverenciam a ponto de quase me beijar os pés. O Rio não me deu o valor que eu poderia ter tido. A garota-propaganda das sandálias Ipanema é a Gisele Bündchen. Por que não fizeram campanha comigo? Ela nem é de Ipanema. Às vezes penso: será que já não estou mais com essa bola toda por causa da idade?
Você ouviu insinuações de que estaria se aproveitando do título de Garota de Ipanema?
Muitas. Mas já disseram também que deveria receber royalties pela música. Vários advogados falaram que eu conseguiria uma nota! Mas como é que você ganha um presente e ainda quer cobrar por ele? Não é justo.
Você abriu a loja Garota de Ipanema em um shopping e fechou por causa de uma ação judicial das famílias de Tom e Vinicius. Sabe exatamente de quem partiu?
Da Ana, a segunda mulher do Tom, aquela em quem ele jogou a sementinha dizendo que era parecida comigo. A semente brotou depois que ele morreu. Mas eu quero paz com todos, quero ficar na boa. É uma história tão bonita... O Tom dizia que a música era a galinha dos ovos de ouro deles, mas eu não quis nem um pintinho. Prefiro assim a ficar cheia de dinheiro e chateada. Fonte http://claudia.abril.com.br