Por Erica Gonsales
Juliê já ganhou nove concursos de beleza infantil |
A menina Juliê, 9 anos, está sentada em um grande pufe. Descalça, de
vestido rodado e tiara com flor de tule nos longos cabelos. Conta que
está feliz porque a semana de provas na escola acabou e ela tirou notas
altas em todas as disciplinas. “Mas eu não estudo! Só presto atenção nas
aulas”, gaba-se. Uma criança comum, a não ser pelas nove faixas dos
diversos concursos de miss que venceu, e que a mãe, Fabrícia Rodrigues,
exibe cheia de orgulho. As mais recentes são as de Mini Miss Brasil e
Little Miss Universo.
A catarinense Juliê Rodrigues é o mais novo talento mirim
contratado pela Rede Record. Aos domingos, apresenta ao vivo o Concurso
de Beleza Infantil no Programa do Gugu, ao lado do apresentador. Com
desenvoltura surpreendente para a idade, a garota chama as candidatas ao
palco. Meninas de 6 a 9 anos desfilam com vestidos de princesa,
penteados elaborados e devidamente maquiadas. A chegada do evento
infantil à TV é um reflexo do crescimento deste tipo de concurso no
Brasil. São dezenas, muitas vezes com nomes idênticos e organizadores
diferentes. Há pelo menos dois sob o título Miss Brasil Infantil, além
do Mini Miss Brasil, Little Miss Nations, Little Miss Beauty Universo,
Miss Galaxy, entre outros.
Allan Schiestl, gerente de um dos eventos intitulados Miss Brasil
Infantil (www.missbrasilinfantil.com.br), diz ir contra o conceito
estético dos concursos internacionais. “Buscamos a expressão infantil e
não a ‘adultizada’, como é comum nos demais concursos”, esclarece. “A
coroa consagrará a dona de um potencial puro, infantil, cor-de-rosa”.
Não permitem o uso de salto alto, de maquiagem carregada nem “caras e
bocas ensaiadas”. Ele mostra inclusive uma cartilha distribuída aos pais
pela organização do evento, com informações sobre sexualidade precoce,
perigos da internet e dicas para a escolha de uma boa agência de
modelos. Isso tudo fez parte de uma reformulação do concurso, a partir
do ano passado.
SORRISOS E LÁGRIMAS
Os eventos acontecem por aqui atraindo mães e meninas, mas também
causando polêmica e desconfiança de quem vê neles um aspecto negativo em
relação ao bem-estar das crianças. Em boa parte, as críticas são feitas
em virtude do referencial tido pelos concursos nos Estados Unidos. O
filme Pequena Miss Sunshine revelou um lado cruel e intrigante dos
eventos norte-americanos ao mostrar a adorável e barrigudinha personagem
Olive (Abgail Breslin) se deparando com concorrentes exageradamente
produzidas, que mais pareciam miniadultas. Da mesma forma, o reality
show do Discovery Channel, Pequenas Misses, causa indignação de pais e
psicólogos ao revelar os bastidores de concursos em que meninas de 6
anos fazem bronzeamento artificial e colocam dentes postiços para
esconder as banguelas.
É notável que os concursos brasileiros pesam muito menos na
produção das meninas. Basta observar as candidatas para concluir que as
características infantis ficam mais preservadas em relação às
norte-americanas. Mas isso é o suficiente? Para a psiquiatra da infância
e da adolescência Regina Gaiarsa, é importante que haja ponderação. “É
normal as meninas terem vaidade desde cedo, querer usar esmalte, batom.
Mas tudo que é exagerado pode prejudicar. Acima de tudo, a criança
precisa ser respeitada. A mãe deve ficar de olho para não sacrificar a
alimentação, o sono, os estudos, a hora de brincar”, alerta. E o mais
importante: a iniciativa de participar dos concursos deve partir da
garota. “Vejo muitas mães que levam a filha de um jeito forçado, porque
querem mais do que as meninas”, conta Luciana, mãe de Ana Clara Santos,
7, eleita Miss Brasil Infantil no ano passado. A menina do Guarujá, no
litoral paulista, vai representar o Brasil no Mini Miss Mundo em junho.
Outro fator de preocupação levantado por Regina Gaiarsa é o
ambiente competitivo e a frustração que uma derrota pode acarretar.
“Pessoalmente, acho complicado expor a criança a uma competição por
beleza e não por capacidade. Ela não precisa ser bonita para ser
graciosa e inteligente, por exemplo”, opina a psicóloga.
No caso de Ana Clara e Juliê, as mães garantem que prepará-las para
as derrotas é preocupação constante. Ambas contam que é comum ver
meninas chorando quando perdem os concursos. “Fico com pena. A Juliê já
perdeu várias vezes e no começo também chorava. Mas depois notei que
isso fez com que ela aprendesse a lidar com as decepções de forma
saudável. Hoje acho que isso ajuda no crescimento dela como pessoa”, diz
Fabrícia. Juliê completa a fala da mãe dizendo que “quando uma porta se
fecha, outras se abrem”.
Já Luciana ainda não teve de enfrentar nenhuma derrota de Ana
Clara. “Ela nunca perdeu um concurso”, diz sobre a filha, que compete
desde os 4 anos. “Tenho medo do dia do não. Quando as meninas que perdem
choram, a gente explica que um dia pode acontecer com ela. Quero que
tenha consciência disso.”
VELHA INFÂNCIA
O conceito de infância dá sinais de transformação |
É fácil julgar a rotina das meninas que participam dos concursos de
beleza, mas vale analisar o contexto sociocultural em que vivemos. Em
plena era da tecnologia e da informação, o conceito de infância dá
evidências de transformação, assim como em todas as áreas da vida
humana. O historiador francês Philippe Ariès já alertava para as
mudanças da ideia que temos de infância na década de 1980, em seu livro A
História Social da Criança e da Família. Ele relembra os diferentes
papéis da criança ao longo dos últimos cinco séculos para mostrar como o
conceito de infância foi transformado com o surgimento das mídias,
desde a prensa tipográfica, passando pelo telégrafo e chegando ao rádio e
televisão.
Na Idade Média, as crianças não recebiam tratamento diferenciado
dos adultos. Com o surgimento da imprensa e dos livros, o acesso à
informação ficou restrito a pessoas alfabetizadas. Até o século 19,
mudanças foram ocorrendo de forma a diferenciar cada vez mais o universo
infantil do adulto. O desenvolvimento da comunicação, com o cinema, o
rádio e enfim a televisão, acabou por tornar a informação novamente
acessível a todos. Crianças e adultos veem TV, mesmo que haja eventuais
restrições para os pequenos. Segundo Ariès, esse livre acesso aos
produtos midiáticos estaria criando “crianças adultizadas” e “adultos
infantilizados”. Isso porque o historiador nem entrou na questão da
internet, que ainda engatinhava quando o livro foi escrito.
É inegável que uma criança tem muitas vezes mais habilidade com
aparatos tecnológicos do que um adulto. Isso lhe dá um tipo de autonomia
que explicaria a precocidade de muitas misses mirins, assim como de
atores e atrizes infantis que dão entrevistas falando com propriedade de
gente grande. E afinal, uma veia artística não merece ser incentivada
nos pequenos da mesma forma que um talento esportivo, por exemplo?
Daniela D’Ávila, responsável pelo concurso Miss Brazil Infantil,
acredita que sim. “Muitos psicólogos falam que os concursos fazem com
que a criança amadureça antes do tempo. Mas no balé e na ginástica
olímpica, por exemplo, elas também não precisam se maquiar para as
apresentações? Conheço caso de meninas que começaram desde cedo em
concursos e aprenderam a falar espanhol, inglês, já conheceram o mundo. A
maioria que tem convívio neste meio apresenta mais desenvoltura”,
desabafa.
Para ela, os concursos que realiza aqui não têm nada a ver com os
norte-americanos mostrados no programa Pequenas Misses. “Peço para as
mães maquiarem do jeito mais básico possível, sem vestido justo e salto
de no máximo 5 centímetros”, conta, e faz questão de informar que não
tem desfile de traje de banho.
“Quando desfilo, me sinto uma princesa”, diz a pequena miss Ana
Clara, que sempre carrega uma mala de bonecas para brincar com as outras
concorrentes. Em breve, além das aulas de balé, natação, música e
inglês, ela vai fazer teatro. Para Juliê, que tem mais de 7.000
seguidores no Twitter, o mais gostoso é fazer contato com o público: “Me
realizei apresentando o Programa no Gugu. É o que eu gosto de fazer”,
empolga-se.
Seria talento nato ou foi a experiência com este universo encantado
que as levou a continuar investindo neste caminho? Para o filósofo
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), a infância é o estágio de vida em que
o homem mais se aproxima do seu “estado de natureza”. É quando a
criança possui aptidões para sinceridade, compreensão, curiosidade e
espontaneidade, que são amortecidas e podem ser retidas pela educação,
alfabetização, razão, pelo autocontrole e senso moral. Outro pensador, John Locke (1632-1704), defendia ideia contrária à
de Rousseau. Segundo ele, a mente da criança é como uma folha em branco,
e nenhuma habilidade cognitiva, intelectual ou mental é inata. Tudo é
aprendido socialmente.
Quando Juliê termina sua transformação de menina em minimiss, está
com sombra preta nos olhos, rímel, blush, gloss e o cabelo preso
cuidadosamente em caracóis depois de passar pelo babyliss. O maquiador,
Danilo Donadeli, fala que a maquiagem usada na menina é totalmente
natural, sem pigmentos sintéticos. O último detalhe é a coroa, feita
especialmente para ela. “É toda em ouro branco, pérolas e cristais
swarovski”, explica a mãe. A pequena posa para algumas fotos e, logo que
termina, quer trocar de roupa e brincar no colchão de água que fica em
uma das salas do centro de estética que frequenta, em Alphaville. “É o
lugar mais legal daqui!”, diverte-se pulando. Definitivamente, uma
criança normal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário e volte sempre!