Por Daniel Kessler de Oliveira
Em muitos centros urbanos de nosso país, incrivelmente, o homicídio está banalizado. Não nos chocamos mais com os índices e com as notícias cotidianas de corpos encontrados com sinais de violência.
Nos acostumamos com os horrores, banalizamos o mal (Hannah Arendt) e um fator a contribuir em grande medida para isto está na máxima popularmente propagada de que no homicídio eles estão se matando entre eles.
Esta afirmação se dá no sentido de que grande parte dos homicídios seriam acertos de contas entre facções criminosas, o que justificaria o alarmante número de homicídios.
Em parte, obvio que isto é verdade, mas um crime como o homicídio nunca pode ser tratado com pouco caso pelas autoridades, independente de quem seja o autor ou a vítima.
Esta percepção acaba servindo como um elemento justificador da incapacidade de conduzir investigações bem feitas, em um grande número de casos criminais que chegam ao judiciário, pois, infelizmente, muitos são os que sequer possuem uma investigação finalizada.
A ausência de estrutura adequada para as autoridades policiais encarregadas dos procedimentos investigatórios resulta em uma série de inquéritos policiais falhos, que resultarão em processos criminais problemáticos.
E se justifica esta prática pelo desinteresse na grande maioria dos homicídios, com aquela justificativa de que eles estão se matando.
Assim, poucos se importam com o resultado a ser obtido naquele processo, pois ambos estão do lado dos eles e, com isto, não são dignos de grande atenção por nós.
Afora a questão seletiva, que divide a sociedade entre nós e eles, muitas vezes com separação eivada de preconceitos raciais e socioeconômicos, esta prática se revela muito problemática no que se refere ao alcance de um resultado adequado aos ditames legais e constitucionais em um processo penal.
O resultado disto é de conhecimento daqueles que laboram na área criminal, um grande número de processos com provas extremamente questionáveis.
A falta de provas técnicas é uma realidade na imensa maioria dos processos e, com isto, a decisão sobre a inocência ou a culpa de alguém se resolverá pela prova testemunhal.
A prova testemunhal é válida em nosso sistema e ninguém irá dizer que não se pode se valer de um depoimento de alguém que viu o fato ou que sabe de algo relevante para a solução de um caso penal.
Entretanto, é uma prova com certas peculiaridades e sujeita a diversas complicações que podem colocar em questão o seu valor.
A influência do tempo, de fatores externos (medo, interesse, induzimento), bem como falsas memórias podem levar a testemunha a referir fatos que não condizem com a realidade ocorrida.
Assim, muitos processos chegam a julgamento com depoimentos testemunhais totalmente contraditórios, cada um dando uma versão para a dinâmica dos fatos e a tese acusatória, muitas vezes, é uma mistura de todas estas versões.
Ademais, é corriqueiro que haja uma prevalência no depoimento prestado na fase policial (sem o contraditório e em uma estrutura que não permite a captação integral do conteúdo do depoimento), que muitas vezes é negado em juízo.
O que leva esta alteração pode ser o medo da testemunha, que já passados meses do fato não quer voltar a se incomodar com aquilo ou mesmo o fato de não ter dito exatamente aquilo na fase policial ou não ter sido questionado sobre os detalhes do que dizia, o que só ocorre com a prova submetida ao filtro do contraditório.
Pois bem, com isso muitos casos chegam a júri com depoimentos contraditórios, com reconhecimentos por fotografias ou feitos de acordo com o que contaram para o reconhecedor, com denúncias anônimas a inspirar testemunhas do ouvi dizer.
A utilização do coringa do in dubio pro societate permite aos juízes e aos tribunais lavarem as suas mãos e não efetivarem os filtros devidos, deixando a solução para o Conselho de Sentença, que, certamente, não terá a capacidade de fazer a diferenciação entre atos de investigação e atos de prova, que não compreenderá o alcance da proibição de decidir, exclusivamente, com os elementos colhidos na fase policial, dentre tantos outros aspectos técnicos.
E, assim, o fato vai a julgamento, onde, muitas vezes, entra em cena o argumento de autoridade do Ministério Público.
O prestígio de que goza o representante do Ministério Público é enorme e obviamente fruto do trabalho que a instituição realiza em prol da sociedade.
Entretanto, no campo do Tribunal do Júri, isto concede ao órgão incumbido da acusação penal uma enorme vantagem, pois o discurso da criminalidade, do nós contra ele, coloca a acusação do lado do bem na luta contra o mal.
Por isto, ouso dizer que um Promotor, se assim quiser, é capaz de condenar com qualquer mínimo indício, dependendo do caso. Pois basta uma construção argumentativa em cima dos índices de violência, passando pelos antecedentes do Acusado e explicando a ausência de mais provas pela incapacidade estrutural do Estado, para servir como elemento suficiente ao convencimento dos jurados.
O argumento de autoridade, supera, assim, a autoridade do argumento, pois o Promotor pode se valer de seu local de fala, de sua posição para ele afirmar (ainda que sem provas) como o fato aconteceu e isto servir para a formação do convencimento dos jurados.
Ausência de provas e presença de convicções são muito mais comuns do que possamos imaginar e pessoas são condenadas pelas convicções pessoais de outros, tão somente, pela posição destes outros, que se valem de sua autoridade.
Isto quer dizer que erram sempre? Claro que não, talvez acertem até mais que erram em suas acusações, o problema é o preço a ser pago pelos erros.
Ao final e ao cabo muito se resolve pela solução do problema crucial do processo penal: a forma pelo qual ele é concebido.
A exigência de provas concretas, por um lado, inviabilizaria o trabalho do Ministério Público e redundaria em uma grande impunidade, pois muitos seriam os processos que sequer chegariam ao julgamento.
Por outro lado, a flexibilização na produção probatória e a aceitação de que processos despidos de suporte probatório cheguem a julgamento, possibilitam a prevalência do convencimento pessoal do representante do Ministério Público e com isto, muitas injustiças podem ser realizadas, com as condenações de muitos inocentes.
Trazendo para uma simplificação que o tema não permite, mas que me valho apenas a título de provocação, temos de decidir entre correr o risco de deixar culpados impunes ou de punir indevidamente inocentes.
A impunidade contra a injustiça, sem olvidar que a impunidade também é uma forma de injustiça e que, feita a injustiça, ocorrerá a impunidade, pois culpando um inocente, deixamos sem culpa um culpado.
Enfim, eu fico com lógica garantista de FERRAJOLI, de que o processo penal é a defesa dos inocentese que toda a estrutura deve servir para reduzir ao máximo a possibilidade de culpar um inocente, ainda que o preço a ser pago seja a impunidade de um culpado, por entender ser de muito maior gravidade punir alguém por um crime que não cometeu, independente da autoridade que argumente contra.
Fonte: Canal Ciências Criminais
http://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/
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